sábado, 26 de abril de 2008

Mafalda



Tira emprestada do blog da Cah Morandi

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Different

Eu assisti "Pufnstuf - A Flauta Encantada" no cinema, na sessão infantil de domingo do Cine Pedutti. Depois disso, assistimos várias vezes, eu e minha irmã, sempre que passava na TV. O filme era dublado, as músicas não. Eu não entendia nada das letras, mas adorava a trilha sonora. Mais tarde, já em Porto Alegre, pudemos revê-lo, pois fazia parte da programação da TV2 Guaíba. Meu inglês já dava pra entender alguma coisa e essa canção me parecia ser algo como "a canção do patinho feio", pois falava em ser diferente, ser sozinho, mas que depois você encontraria outros como você. Parecia lógico, em se tratando de um filme para crianças.

Acordei nesta segunda com a música na cabeça e fui atrás dela no YouTube. Dei-me conta de que meu inglês me permitiu entender toda a letra, pela primeira vez realmente! Ainda acho que tem muito de patinho feio nela. Contudo, tendo sido composta no auge dos movimentos de contracultura nascidos nos anos 60, um pouco daquelas (muitas) reivindicações de cunho social com certeza estavam passando na cabeça do letrista. É possível ouvir os ecos de "lute por suas idéias, mesmo que seja difícil" ou "juntos somos muito mais que dois". Quase todo filme dos anos 60 e início de 70 menciona com maior ou menor ênfase o movimento hippie e este filme não é exceção. Mas como (sabiamente) a letra da canção não se prende a nada de específico, não perdeu sua atualidade, sua universalidade e pode ser entendida de muitas maneiras.

Tanto que, ouvindo hoje, eu pensei mesmo foi na busca pelo auto-conhecimento, no nosso amadurecimento emocional e social. Porque o processo de se tornar um indivíduo único, completo - que Jung chamou de individuação - é um processo interno, portanto, solitário; além disso, requer que sejamos honestos com relação aos nossos defeitos, que saibamos reconhecer nossas qualidades, e também que possamos abrir mão de tudo que está obsoleto em nossa vida - idéias, atitudes, etc. - e isto é mesmo muito doloroso e difícil! Mas é isso que nos torna especiais, é nisto que está nossa beleza e por isto vale a pena! E, se prestarmos atenção, veremos que não estamos sozinhos, pois há muita gente empenhada nessa mesma busca, de construir sua auto-estima, de descobrir o porquê de estarmos aqui neste planeta e qual é o nosso papel - e de ser feliz! (E, afinal, não era esta mesmo a história do patinho feio?)

Mas vou deixar de blábláblá e colocar o texto (o que entendi dele) e deixar vocês curtirem a voz da Mama Cass.


When I was smaller and people were taller,
I realized that I was different
I had a power that set me apart!
I learned to take it, to use it, to make it
It's not so bad to be different
To do your own thing and do it with heart

Different is hard, different is lonely
Different is trouble for you only
Different is heartache, different is pain
But I'd rather be different than be the same!

At first I wondered what hecks I was under
What did I do to be so different?
Then I discovered some others like me
Wonder no longer, together we're stronger
It's not so bad to be different
Be true to yourself, that's what you must be!

Quando era pequena e as pessoas eram grandes
Percebi que era diferente
Eu tinha um poder que me separava dos outros
Aprendi a aceitá-lo e a usá-lo com sucesso
Não é tão ruim ser diferente,
Fazer as minhas coisas e fazê-las de coração

Ser diferente é difícil, ser diferente é solitário,
Ser diferente é ter problemas só nossos
Ser diferente é triste, ser diferente é doloroso
Mas eu prefiro ser diferente a ser igual a todo mundo!

No começo me perguntei que maldição seria essa
O que foi que eu fiz pra ser tão diferente?
Então descobri outros como eu
Não preciso mais perguntar, juntos somos mais fortes
Não é tão ruim ser diferente
Seja verdadeiro consigo mesmo, é assim que você tem que ser





P.S. Norman Gimbel, o letrista, formou parceria com Tom Jobim, Marcos Valle, Baden Powell, e foi o autor das versões para o inglês de "Garota de Ipanema" "Insensatez", "Meditação", "Água de Beber", entre outras.

sábado, 12 de abril de 2008

Se

Havia um livrinho de poesias que eu gostava de abrir e ler aleatoriamente quando criança. Lembro-me que gostava deste poema. É também bastante conhecido e citado como inspiração (e até mesmo parodiado). Não gosto muito do verso final - soa datado demais pra mim.

SE

Se és capaz de manter tua calma, quando,
todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.
De crer em ti quando estão todos duvidando,
e para esses no entanto achar uma desculpa.

Se és capaz de esperar sem te desesperares,
ou, enganado, não mentir ao mentiroso,
Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,
e não parecer bom demais, nem pretensioso.

Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires,
de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.

Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.

Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida.

De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste!

Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,
e, entre Reis, não perder a naturalidade.
E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,
se a todos podes ser de alguma utilidade.

Se és capaz de dar, segundo por segundo,
ao minuto fatal todo valor e brilho.
Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e - o que ainda é muito mais - és um Homem, meu filho!


Rudyard Kipling
Tradução de Guilherme de Almeida



IF
If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you
But make allowance for their doubting too,
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don't deal in lies,
Or being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise:

If you can dream--and not make dreams your master,
If you can think--and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build 'em up with worn-out tools:

If you can make one heap of all your winnings
And risk it all on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: "Hold on!"

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings--nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much,
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that's in it,
And--which is more--you'll be a Man, my son!

--Rudyard Kipling

Invictus

Não conheço a poesia de William Ernest Henley. Somente os dois últimos versos deste poema, citados por Liz Greene em um de seus livros. Segundo ela, todo Escorpiniano deveria dizer a si mesmo essas palavras. Outro dia revi estas linhas e resolvi utilizar as facilidades da Internet para conhecer o poema inteiro. Trata-se de um poema famoso e bastante citado, como eu já imaginava.

Henley, poeta inglês nascido em 1849, teve uma vida difícil. Tuberculoso desde os 12 anos, teve a perna esquerda amputada aos 16, por causa da doença. Trabalhou para sustentar a mãe e os irmãos após a morte de seu pai e perdeu sua única filha, de 6 anos, vítima de meningite. O poema foi escrito no hospital.

Invictus


Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.


Da noite que me cobre,
Negra como um poço de alto abaixo,
Agradeço quaisquer deuses que existam
Pela minha alma inconquistável.

Na garra cruel da circunstância
Eu não recuei nem gritei.
Sob os golpes do acaso
Minha cabeça está sangrenta, mas erecta.

Além deste lugar de fúria e lágrimas
Só o eminente horror matizado,
E contudo a ameaça dos anos
Encontra e encontrar-me-á, sem temor.

Não importa a estreiteza do portão, ¹
Quão cheio de castigos o pergaminho, ²
Sou o dono do meu destino:
Sou o capitão da minha alma. ³

(Trad. de Luís Eusébio)

E, como a tradução que o acompanhava foi feita em verso livre, procurei por outra versão. Encontrei esta aqui:

Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.

Copyright © André C S Masini, 2000
Todos os direitos reservados. Tradução publicada originalmente
no livro "Pequena Coletânea de Poesias de Língua Inglesa.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Meus pés

Esta semana bati a sola do pé em algum lugar e fiquei mancando por dois dias. Se tivesse sido na perna ou no braço, nem lembraria, mas sendo no pé, doía a cada passo. O desconforto dos pés é desconforto do corpo inteiro.

Lembro-me das minhas botas ortopédicas. Eram pesadas, quentes e desconfortáveis e, por causa do bico torto para virar meus pés para fora, tornavam-me alvo de deboche dos colegas que não perdiam a oportunidade de dizer que eu tinha calçado os pés trocados. Bem, eles se divertiam, eu não. Na volta da escola, sob o sol do meio-dia, meus pés transpiravam e começavam a queimar dentro delas e, para me distrair até o fim do caminho, ficava imaginando que, se eu fosse a Jeannie ou a Feiticeira, piscaria e estaria em casa, ou se fosse o capitão Kirk, pediria que o Scott me teleportasse direto pro meu quarto.

Ao chegar em casa, literalmente as arrancava e as jogava longe e passava o resto do dia descalça, não por rebeldia, mas porque não tinha outros sapatos. Aprendi a andar descalça sobre pedrinhas, capim e asfalto quente. Todo dia ia comprar sorvete na padaria Roma e saltitava pra não queimar os pés até encontrar a primeira sombra.

Por volta dos onze ou doze anos, declarei minha independência: quero sapatos! Foi logo depois disso que surgiram as Melissas e me apaixonei por aquela sandália de plástico transparente e macio - parecia que não estava usando sapato nenhum! E, porque se usava com meias também, eram sapato pra inverno e verão. Não tirava mais dos pés!

Um problema que acabou não sendo corrigido foi o pé chato - a ausência do arco do pé. Como me sentia responsável por não terminar o tratamento, tentava compensar jogando o peso do corpo para fora, para não desmontar o arco ao caminhar. Fiz isso até os 31 anos, quando comentei sobre o fato com o professor de Técnica de Alexander e ele me sugeriu que eu não o fizesse. Melhor seria comprar uma palmilha ortopédica e pisar sem nenhum músculo tensionado, disse ele.

Experimentei caminhar sem prender o pé. Uau!!! Que alívio! Meu corpo ganhou novo alinhamento: a coluna se encaixou sozinha, os ombros relaxaram e o pescoço ficou solto. A postura ficou bonita e a respiração começou a fluir com facilidade. Até aquela dorzinha da lombar desapareceu. Pensar que passei a vida inteira andando dura por causa de um arco que deveria estar ali mas não estava! Mas como a gente não perde um hábito da noite para o dia, preciso manter minha atenção aos meus movimentos na hora de caminhar e me lembrar constantemente de soltar os pés e o calcanhar. Se estou sob tensão, a tendência é voltar ao movimento mais antigo, mas pelo menos agora sei que eu POSSO caminhar com mais leveza!

Pois é, uma boa base é o começo de tudo!



Esta foto dos meus pés foi tirada pelo Dessórdi no sarau do Clave & Canella , em 2005, no Salão Mourisco.



terça-feira, 8 de abril de 2008

Envelhecer...


Envelhecer não me assusta. Realmente não. O que me incomoda é o acúmulo dos anos não vividos, das oportunidades perdidas, das escolhas errôneas, das expectativas frustradas....

...

Mas como incomodada ficava era minha avó, vou tocando bola pra frente e nanossomas de pró-retinol no rosto!





- Qual é o curso, capitão?

- Para frente, Sr. Sulu. Sempre em frente!







sábado, 5 de abril de 2008

Canção da minha infância






Girando, girando,
Não paro de girar
Trabalho cantando
Na roda de fiar

A velha fiandeira trabalha sossegada
A noite inteira na roda encantada

Girando, girando,
Não paro de girar,
Trabalho cantando
Na roda de fiar...

Lailarilailari...





segunda-feira, 31 de março de 2008

Impressões sobre Newmann e Ligeti

Então eu resolvi fazer este (excelente) curso de História da Arte. Já na faculdade queria muito me matricular nesta disciplina, que era eletiva para a Música, mas nunca sobrava vaga. Quando recebi a divulgação destes cursos achei que seria uma boa oportunidade e me inscrevi para os dois módulos oferecidos: da Renascença ao Iluminismo e arte do Século XX a partir da década de 50.

Como sou completamente leiga no assunto, procuro absorver a maior quantidade possível de informações, mas não me preocupo muito em desenvolvê-las, porque a idéia é esta mesmo: reter o que chamar minha atenção. E o que me chamou a atenção nesta semana foram as telas do pintor Barnett Newmann (1905-1970), que se insere no grupo de artistas que optou por trabalhar com "campos de cor". Suas telas, todas datadas a partir de 1948 se não me engano, são campos de cor cortados por uma faixa, geralmente vertical (mas havia também algumas horizontais) que ele mesmo chamou de "zip", ou faixas de luz. Algumas apresentam uma só tonalidade interceptada pela faixa; outras compõem-se de faixas em tons mais escuros ou claros, criando barras verticais.

As primeiras telas não chegaram a me impressionar, mas a seqüência incessante deste mesmo tema começou a me dar uma certa angústia. Aquelas faixas começaram a se parecer com grades e a sensação de "aprisionamento" destas cores passou a me incomodar. De repente, surgiram umas telas onde a tinta "vazava" pra fora dos limites do campo de cor, como uma se fosse um acabamento malfeito, mas isto era interessante - e logo percebi que não era a única a pensar assim, pois as manchinhas de tinta suscitaram comentários do grupo ("Na faculdade não nos deixavam fazer isso", "Ah, mas é o que mais gosto"). Bem, no meu entender, depois de todo aquele rigor geométrico, a manchinha provocava um certo alívio, um sinal de que o aprisionamento não era completo afinal, uma promessa incipiente de liberdade.

E aí é que surge o paradoxo. Pois, segundo a professora, essa opção foi feita justamente pela liberdade que trazia ao artista - liberdade de não ter que pintar uma tela figurativa! Sim, visto por esse ponto de vista, eu compreendo. Toda tela figurativa já está praticamente definida pelo artista (se ele pinta um vaso de flores, nós veremos muito provavelmente um vaso de flores), enquanto que uma tela cheia de cor é um campo livre onde pode nascer toda e qualquer imagem. O grito de liberdade de não precisar fazer esta escolha! Já o pintor que estudamos na semana anterior, Frank Stella, também havia feito uma opção semelhante, porém Stella trabalha com listras em forma de "V", dando origem a imagens quase caleidoscópicas em algumas obras. Apesar de também conter geometria em seus padrões, eles parecem surgir com mais leveza do que as barras de Newmann.

Deixo claro aqui que não se trata de um julgamento de valor e sim de impressões pessoais. Este tipo de pintura não me atrai muito, talvez até pela minha falta de conhecimento mais elaborado sobre ela. Mas havia beleza. Gostei particularmente da seqüência de telas chamadas de "18 Cantos", onde as faixas estavam esmaecidas, pareciam-se mais com reflexos de luz e menos com grades e várias ainda com manchas escuras pintadas sobre elas, como as manchas de uma borracha suja no papel (de novo, talvez a sensação de afrouxamento do rigor geométrico seja o motivo da minha preferência).

De qualquer modo, esta foi minha impressão. Outra pessoa fará uma leitura completamente diferente e é por isso mesmo que se faz arte, creio eu. E digo mais, esta é minha impressão hoje, sei lá eu de amanhã! Recordo-me da primeira vez que ouvi o "Lux Aeterna", de Györgi Ligeti. Esse "Requiem" contemporâneo escrito para 16 vozes em micropolifonia causou-me falta de ar e angústia extrema na primeira audição, numa aula de História da Música, e só não saí correndo e gritando pela óbvia repercussão que este ato teria! Bem, quase quinze anos depois, o Januibe encasquetou que o Musica Reservata tinha de cantar o Lux. Não achei ruim não, até fiquei curiosa pra saber se teria a mesma reação. Pois não foi incrível? Naquela audição, percebi apenas uma "cor sonora", uma vibração perpétua que ora privilegiava sons mais agudos, ora sons mais graves. Mas, como cantora, pude verificar o movimento interno incessante feito de cânones diatônicos que vão se sobrepondo, com determinadas notas sendo "passadas" de uma voz para outra numa teia sonora vibrante. Mais ainda, naqueles dias em que ensaiávamos o Lux, eu estava vivendo momentos cotidianos de angústia e solidão contínuas, seis meses após a morte de minha mãe. No entanto, os ensaios daquela peça me deixavam serena, passaram a ser ilhas de paz no meio da tristeza.

Bem, está aí um exemplo de como a mesma obra pode nos impactar diversamente, dependendo do momento de vida em que nos encontramos, mas também do grau de intimidade que temos com ela. Nada é definitivo, afinal de contas, nem mesmo nossas impressões sobre arte. Por isso ela não cessa de preencher nossos vazios (ou de esvaziar nosso transbordamento!). É a necessidade da arte, mais um motivo!

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Motivo



Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno, a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



"Motivo" é o título deste bem conhecido poema de Cecília Meireles que estava me rondando há vários dias. Mas como só me lembrava da primeira estrofe, fui procurar o resto. Achei interessante transcrever aqui porque parece sintetizar em poesia um pouco do que venho escrevendo nestes dias. Então, aí está.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Férias

Cá estou eu, ainda de férias, mas já me preparando pra volta da rotina normal (que, afinal de contas, depois que fiquei dona do meu tempo, não é nem normal nem rotina). A verdade é que, como muita gente, planejo trabalhar muito nas férias, fazendo, claro, tudo o que não tenho tempo de fazer nas míseras 24 horas do dia no resto do ano. Só que, como chego quase pedindo água ao término dos compromissos (que, desde fiquei dona do meu tempo, são os melhores que poderia desejar), antes de me dedicar a estes planos, passo por um período de "ressaca" ou de "desintoxicação" de atividades e fico, literalmente, uma ou duas semanas fazendo absolutamente nada (que, segundo o Sr. Spock, é realmente a única maneira lógica de descansar...). Quando o absolutamente nada começa a entediar, preciso absolutamente começar a fazer alguma coisa (mesmo contrariando o Spock) e é aí que meu planos começam a entrar em ação.

Neste ano, pintar minha casa foi, sem dúvida, a atividade mais esperada, mas também a mais cansativa (pintar o teto deixa qualquer um bem torto). Mas a vontade bateu forte, principalmente no Carnaval, e consegui terminar dois cômodos inteiros.

Infelizmente pra mim, há muitas outras atividades na lista de espera, tais como ler os livros que não resisto não comprar nas perigosas excursões a livrarias; ou então voltar à minha sessão de uma hora de yoga pela manhã (ou tarde, ou noite, ou quando eu me lembrar e sentir vontade de fazer); passear mais freqüentemente com meu cachorro (pois não resisto ao olhar pidão que ela me lança quando passo por ela); ver os filmes que perdi durante o(s) ano(s) inteiro(s) (dessa já até desisti!); estudar, estudar, estudar. Como? Estudar nas férias? Sim, tocar piano, porque se não toco, fico sem vontade de tocar e se toco, começo a querer tocar mais e mais e aí falta tempo durante o ano e penso então "nas férias vou tocar mais" (Ha!).

Claro que, como são férias, devo fazer tudo isso com tranqüilidade, sem stress, acúmulo, obrigação e, vai daí, não dá tempo de fazer tudo realmente. O ano chega e fico pensando "nas próximas férias termino isso..."

Bom, toda essa divagação sobre as férias começou justamente porque, na falta de ver gente, comecei a ver blogs, que são representações de gente, ou gente virtual, coisa que, quem me conhece, sabe que não sou fã, mas que tem seus aspectos interessantes.

Blogs são mesmo bons exemplos de relacionamento na era de Aquário, se me permitem essa consideração astrológica. Porque não poderiam ser expressões mais pessoais comunicadas de maneira tão impessoal, ou tecnológica, ou globalizada, adjetivos que se aplicam tão bem ao signo de Aquário (ao signo, não necessariamente aos aquarianos que, como todo ser humano, possuem todos os signos mais ou menos misturados, sendo por isso que, apesar de compartilharem traços em comum, todo indivíduo é único).

OK, fechando as aspas e voltando à questão dos relacionamentos. Quando eu era adolescente, a moda eram os pen-pals, correspondentes que, em sua maioria, nem chegávamos a conhecer pessoalmente. Durante uns três ou quatro anos cheguei a ter quase 30 pen-pals, a maior parte brasileiros, mas alguns americanos também. A gente escrevia sobre gostos em comum, que naquele tempo eram os programas de TV. Esperar pelo carteiro era a grande diversão!

Mas, bem antes disso ainda, lá na minha cidade do interior em Araçatuba, férias já eram um período sem gente. Isto porque nossa família não viajava mesmo. Meu pai, acho que nem tirava férias e, se tirava, ficava no escritório lendo o dia inteiro. Minha mãe reclamava "Luiz, a gente não vai pra lugar nenhum". Ele respondia "porque não vão ao clube?" O clube. Bom, meus amigos não iam ao clube durante as férias, porque eles passavam o ano inteiro no clube e nas férias, iam pra praia. Não que o clube ficasse vazio. Na verdade, se ficasse, eu até apreciaria. Mas, vejam bem, estou falando do período pré-filtro solar da História da humanidade. Era o tempo do óleo de bronzear. Vocês já viram como fica uma piscina depois que um monte de gente nadou usando óleo de bronzear? Isso mesmo, fica cheia de óleo, boiando na superfície que nem uma gigantesca panela de sopa. E, com a água sempre quente por causa da temperatura diária de quase 40 graus, eu acabava me sentindo uma cenoura cozida! "Não, não quero ir ao clube, pai."

Em vista disso, fui desenvolvendo uma intensa vida social comigo mesma. Basicamente leitura de livros, tocar piano, andar de bicicleta pelo nosso quarteirão, ouvir os pouquíssimos discos que eu tinha na época e brincar com minhas bonecas - duas Suzis, dois Betos, com os quais eu criava verdadeiras sagas familiares em alguns dias mais empolgados.

Voltando aos blogs. Agora que estou escrevendo o meu, baixou a curiosidade de ler outros. Aqui no blogspot tem aquela seta de "próximo blog". Só que, em geral, cai num blog do outro lado do mundo, a maioria com pouco ou nenhum interesse pra mim. Então dei-me conta do que já é óbvio para quem navega há mais tempo: através deles, tenho a oportunidade de saber do cotidiano e das idéias de pessoas que não conheço, ou que conheço de vista, ou que conheço mais ou menos e de quem nada saberia se não fosse pelo blog. Mesmo alguns amigos mais chegados, nessa vida corrida que todo mundo leva, que é que eles revelam pessoalmente? Pouco. Mas aí vão pra internet e escrevem sobre sua vida particular. Ou exercitam a atividade de escritor, o que dá no mesmo, pois todo escritor se revela pelo estilo, mesmo que sua história seja totalmente fictícia. Não deixa de ser parecido com os pen-pals, só que agora se escreve um texto para quantos quiserem ler. Não é mais tão direcionado, então o tema é mais livre e não se tem a obrigação de responder a este ou aquele comentário (apesar de haver espaço para isso também).

Minhas férias estão diferentes. Tenho mais uma atividade na minha lista, bastante social até, a de atualizar meu blog. E ler o de outros. Como eu disse na minha primeira postagem, quando eu escrevia, escrevia pra mim, ou no máximo pra um leitor definido. Este negócio de escrever pra sei lá quem que vai ler me deixou um tanto quanto presa no início, tanto em relação ao tema quanto à forma. Depois de vagar por blogs tão diversos, estou começando a me sentir mais à vontade para escrever como costumava escrever antigamente. É, acho que estou gostando!...

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

I Ching - O Livro das Mutações

No hexagrama de número 16, chamado de Yu pelo chineses e traduzido em português como "Entusiasmo", há uma outra referência sobre chuva aliviando tensões. Mas traz também uma comparação com a música que gostaria de compartilhar. Transcrevo:
"Quando, ao início do verão, o trovão, a energia elétrica surgem novamente da terra e a primeira tempestade refresca a natureza, uma prolongada tensão se dissolve. Há alívio e alegria. A música também tem o poder de dissolver as tensões do coração e a violência das emoções sombrias. O entusiasmo do coração se manifesta espontaneamente no som do canto, na dança e no movimento rítmico do corpo. O efeito inspirador do som invisível que emociona os corações dos homens, unindo-os, é um enigma que perdura desde os tempos mais remotos. Governantes utilizavam essa tendência natural para a música; elevaram-na e deram-lhe ordem. A música era considerada como algo sério e sagrado, que purificava os sentimentos dos homens. Cabia a ela louvar os méritos dos heróis, construindo, assim, uma ponte para o invisível. Nos templos, os homens se aproximavam de Deus através da música e da pantomima (da qual o teatro se desenvolveu)."
Acho que há muitos motivos para se fazer música, todos igualmente válidos. Eu mesma não conseguiria me limitar a apenas um ou dois motivadores. Mas gosto muito de perceber a música da maneira acima descrita - como ponte para um mundo invisível, sagrado e como meio de unificar as emoções individuais. Entre tantos outros, este é um motivo que sempre vale a pena considerar!

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Energia

Estive conversando outro dia com amigos sobre a energia de uma apresentação e sobre como uma boa energia circulando no grupo e com a platéia faz dessa apresentação um momento inesquecível, mesmo quando o resultado musical ainda não está 100%.

Lembro-me de alguns exemplos que muito me alegraram. Um dos primeiros talvez tenha sido nossa participação no "Show de Talentos" do Prof. Nicolau, na PUC, em 1987. Havia uma grande variedade de números, nem todos musicais. Quando nosso grupo começou a cantar a platéia aplaudiu muito! Eu não queria mais sair dali! Lembro-me também de uma apresentação do coral do ICBNA em Santa Rosa, em 1990, quando cantamos "The Long and Winding Road" com a chuva batendo no telhado de zinco. Acho que o público mal ouvia a gente e provavelmente começamos a gritar, mas me emocionei tanto que não queria que a música acabasse (ah, chuva...).

Claro que o ideal é combinar excelente qualidade musical com excelente energia rolando! Só acho que uma não depende da outra. Eu, pessoalmente, memorizo uma apresentação como inesquecível quando a energia que circulou foi das boas. E, embora não deixe nunca de valorizar o aprimoramento musical, fico muito triste quando essa mesma energia fica faltando.

O interessante é que energia não é algo que se busca. Ela acontece. Se ficarmos buscando, muito fixados nesse objetivo, ele provavelmente escapa de nosso alcance. É mais uma questão de estar presente, curtindo o momento presente sem muita preocupação.

Preciso me lembrar disso nas minhas próximas apresentações!

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Às vezes

Às vezes eu sinto muita saudade da minha vida. Às vezes não sinto nada. Só espero poder logo olhar para trás e respirar aliviada porque tudo passou.

Formaturas

Nesta semana, estive em duas formaturas da UFRGS: a das Letras e a das Artes, nesta ordem. Tive, portanto, a oportunidade de ouvir os discursos de ambas as áreas na mesma ordem em que eles aconteceram na minha vida. Há 18 anos, eu me formei em Letras pela PUC, E, há exatos 10 anos, eu me formei em Música pela UFRGS. Foram dois momentos bem diferentes. Na PUC, muito formalismo e seriedade. E eu, bem, nada feliz. Não queria seguir aquela profissão, mesmo gostando muito da área de Letras. Na UFRGS, o oposto. Feliz, feliz, feliz, terminando um curso do qual, por muitas vezes, quase fui obrigada a desistir. Atropelei meu discurso de agradecimento numa cerimônia mais informal e divertida.

Assistindo agora a estas colações de grau, já distante das salas de aula por algum tempo, pude observar um pouco as expectativas daqueles que estão ingressando no mercado de trabalho neste início de século. Mesmo não oferecendo propostas de altos rendimentos, a área de Letras ainda parece dar mais segurança nas ofertas de emprego. Portanto, os discursos giraram em torno de críticas ao próprio curso, a dificuldade pessoal de cada um para concluí-lo, a esperança de reconhecimento do diploma no mercado (especialmente para os que se formam em Tradução, como foi o meu caso) e agradecimento pelo apoio emocional e financeiro das famílias durante os estudos. Nas Artes, a busca de reconhecimento é mais profunda, pois o artista continua sendo visto como cigarra numa sociedade de laboriosas formigas. O agradecimento foi mais pelo apoio das famílias a suas escolhas profissionais.

Mas, de maneira geral, o que senti em ambas foi uma expectativa muito grande de fazer uma diferença no mundo. Não que este sentimento não estivesse presente antes. Claro que estava! Mas as turmas eram mais dispersas. O objetivo era mais imediato, prático: ter um emprego que pagasse as contas, no caso das Letras. No caso da Música, grande parte já tinha outro diploma (e outro emprego) e cursou a Universidade para realizar um sonho pessoal. Fico pensando se o motivo disto não foi o fato de que a maioria de nós tinha sido adolescente nos anos setenta e oitenta, períodos política e economicamente sofridos na história brasileira, de golpes militares a inflação galopante. Predominava a crítica amargurada ao país e uma tendência à falta de esperança, no estilo "não adianta fazer nada porque nada vai mudar".

Ah, agora muitos podem dizer - e mudou alguma coisa? Os problemas políticos e econômicos ainda existem aos montes, como sempre existiram . Mas algo mudou sim. Sem querer entrar demais neste assunto, acho que hoje as pessoas de vinte e poucos anos têm mais vontade de transformar o mundo, acreditam um pouquinho mais nas possibilidades de abrirem-se novos caminhos, de se descobrirem novas soluções. Também notei que, nos dois grupos, parecia haver mais união, mais integração. Não foram várias pessoas que ingressaram na vida profissional. Foram grupos de amigos, compartilhando os mesmos sonhos e esperanças. As escolhas profissionais vieram carregadas de muita determinação. Na Música, a situação parece ter-se invertido, pois a maioria já está atuando no mercado de trabalho como músico.

Isto é muito significativo pra mim. Acredito que as mudanças positivas que todos desejam podem realmente acontecer. Que o mundo não vai ser perfeito, isto sabemos. Sempre haverá descontentamento, sempre haverá sensação de incompletitude. Mas, sem isso, também não haveria motivação pra ir em frente, tudo já estaria pronto mesmo. Diante de tantas dificuldades que precisam ser atendidas, pode até parecer pouco. Não importa. Importa que seja real, importa que dê alguns frutos. E, como conheço de perto esses novos profissionais, muitos deles grandes amigos meus, tenho certeza de que esses frutos virão!

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Os que vão e os que ficam

Nunca tinha pensado no assunto, até que um dia, lá pelos anos de 79 ou 80, sei lá eu, uma menina da minha idade bateu na nossa porta, me cumprimentou pelo nome e perguntou se eu lembrava dela. Não, sinceramente, não. Mas convidei-a a entrar e ficamos batendo papo por uma meia hora, ela perguntando sobre todos nossos amigos do colégio, eu respondendo, ainda sem lembrar dela. Só depois que saiu é que fui procurar as fotografias antigas da nossa turma e a reconheci nas fotos do pré-primário.

Então me ocorreu que quem vai embora leva consigo um registro daquele momento específico. Leva todo um mundo congelado no tempo. Mas, pra quem fica, quase nada mudou. Apenas o surgimento de uma ausência, em geral logo preenchida por novas presenças. Pois quando chegou a minha vez de sair de cena, fiquei fotografando meu mundo pra levar comigo. Não queria que meus amigos se esquecessem de mim, mas, quanto a isso, não havia muito que pudesse fazer.

Quando cheguei em Porto Alegre sentia-me como se tivesse aterrizado em outro planeta - e estava no mesmo país, falando a mesma língua, só com um cantar um pouco diferente! Mas não conhecia ninguém - nenhum rosto, nenhuma rua, nenhum lugar especial, nada. Tudo que eu conhecia tinha ficada pra trás. Vim com família, com tudo que eu tinha na bagagem, sem perspectiva de retornar. Experiência bem diversa de quando fui estudar em Nova Iorque.

Já havia estado por lá várias vezes, em viagens de férias. Já conhecia alguns rostos, já sabia onde ir pra se chegar nos lugares, já tinha alguns lugares pra ir. Mas fui sozinha, deixando tudo em compasso de espera - família, amigos, emprego, cachorros. Fui com prazo pra voltar, com a idéia de aprender o máximo possível, sabendo ser essa uma chance única na minha vida. Consciente de que pra quem vai, um novo universo se abre, mas pra quem fica, a paisagem quase não se altera, tentei manter-me sempre atualizada, em contato com esse lado do mundo a cada nova estadia em Porto Alegre, para estar em dia quando regressasse de vez. E, no entanto, ficava com uma sensação de não pertencer a lugar algum. Pois, sem estar construindo nada por aqui, era apenas uma visitante. Retornando a Nova Iorque, nada era definitivo. Estava apenas buscando qualificar meus conhecimentos. Meu prazo se ampliou, não consegui o que queria mas recebi o que precisava. É assim que Deus trabalha.

Neste sábado passado fomos nos despedir do nosso amigo Dessórdi que está indo pros EUA. Vai pra lá na mesma situação em que eu fui: pra estudar, com data pra retorno. Como cada pessoa desenha sua própria estrada, não tenho como saber o que ele encontrará por lá. Mas desejo de todo coração que encontre o que procura. E que volte! Pois se é verdade que pouco se altera com a nossa ausência, o que está por vir depende de cada presença neste cenário. Cada pessoa contribui com um novo detalhe na paisagem que, após algum tempo, seria bem diferente se ela não tivesse estado ali. E acho que nossa paisagem fica mais bonita com a presença de bons amigos como ele!

Dessórdi, um grande abraço!



Bota-fora do Dessórdi

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Memórias

Final de tarde a passarada canta na praça da caixa d'água, em frente ao portão de entrada do meu colégio, lá em Araçatuba. O barulho que os pardais fazem chega a parecer um campo de batalha. Essa foi uma das imagens que gravei na memória antes de me mudar pra Porto Alegre. Durante um ano inteiro, já sabendo que não voltaria pra lá tão cedo e que, certamente, não voltaria a morar lá, andei por todos os meus lugares preferidos, e os nem tão preferidos, e dizia pro meu cérebro: memoriza isto. Isto era um cheiro, uma imagem, um som, uma cor, uma sensação térmica, um lugar. Incrível como funcionou, pois muitos daqueles momentos ficaram mesmo registrados.

Mas é lógico que as memórias em geral não são gravadas intencionalmente. Uns anos atrás comprei o CD com os sucessos do Raul Seixas e quando ouvi Gita tive um acesso de angústia, um quase sufocamento, acompanhado de uma saudade de algo que não sabia explicar. E a imagem veio logo em seguida. Nossa casa ficava num terreno com desnível. Havia uma escada de uns dez degraus da cozinha até o quintal. Eu costumava me deitar no largo corrimão de tijolos e ficar um tempão olhando pras nuvens. No quartinho dos fundos, era comum a empregada estar passando roupa com um radinho de pilha ligado em alguma AM. E Raul Seixas tocava adoidado naqueles anos setenta em que eu era criança. Eu nunca mais tinha escutado esta música, então quando ouvi o CD foi quase um choque!

Gosto tanto de guardar esses momentos em que nada estava acontecendo de específico. Nenhum fato extraordinário, nenhuma ação ou encontro especial (OK, estes também estão na memória, é claro). São manhãs iluminadas por um sol gelado descendo do ônibus aqui em Porto Alegre, ou aquelas tardes refrescadas do após chuva que já mencionei. Um início de noite com ar morno, sentada na cadeira de balanço lendo um livro, um dia calorento andando pelo centro ou um dia frio de rachar os lábios caminhando de volta da escola. Mas todos esses registros ficaram guardados porque na hora eu parei de pensar no que estava fazendo pra prestar atenção no agora!

Como é que diz a canção do John Lennon? A vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outras coisas? Acho que era algo assim. Bem, depois que comecei a meditar, passei a tentar viver mais conscientemente neste espaço mental onde não estamos preocupados com nada, esperando por nada, ansiando por nada. E fazendo o que estivermos fazendo com a mente fixa no presente. Para acabar com a impressão de que minha vida nada mais era do que um eterno esperar por algo, sem sequer saber se esse algo chegaria. Como com os personagens de "Esperando Godot", a peça de Beckett cuja leitura me causou uma terrível aflição!

Pois então, foram vários anos de tentativa, nem sempre bem-sucedida, mas tem valido a pena. Já consigo desacelerar certos momentos, alongá-los no tempo. É reconfortante pensar que isto já acontecia também espontaneamente, pois acabam sendo essas as horas mais expressivas da nossa existência, como no terceiro ato de "Nossa Cidade", quando Emily escolhe um dia "pouco importante" para ser revisitado e se emociona por não ter prestado atenção a ele quando estava viva, citando mais uma peça teatral. São os momentos em que a vida acontece!...

Estamos no dia 17 de janeiro, mas a desaceleração das atividades faz parecer que já se foi uma eternidade desde a entrada do ano, por um lado. Por outro, não vejo o tempo passar, tamanha é minha concentração no instante que estou vivendo. Bom assim. Não anseio pelo que espero e o que espero chega mais rápido.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Chuva, doce chuva

Uma das poucas coisas que automaticamente me deixam bem é uma chuva depois de um dia de quase quarenta graus. Lá vou eu de novo, mas é que é verdade. Essa era uma das coisas boas do Natal. Um dia perfeito de verão é aquele em que se arma uma tempestade. Já começa com a ventania e as nuvens que se fecham, os redemoinhos de folhas e os cabelos voando. Se estiver de mau humor, passa na hora. Se estiver triste, fico serena. Se estiver alegre, fico eufórica.

O motivo disso é porque sinto-me mal no calor excessivo, e Araçatuba, minha cidade natal, é a sucursal do inferno, ou seja, trinta e tantos graus é a temperatura média do ano inteiro. A chuva alivia, refresca, descansa. Gosto de sentir os primeiros pingos no corpo e depois entrar em casa e ficar espiando pela janela enquanto ela molha o jardim, as ruas, os carros e as pessoas que passam correndo pra fugir dela. Quando criança, ainda tinha o prazer de brincar na enxurrada que se formava na esquina de casa quando a chuva parava, quase um rio descendo pela Rua Bandeirantes. Depois eu ficava com o pé sujo de piche e dava um trabalhão pra tirar, mas ia assim mesmo. Nunca peguei nem um resfriado!

Mas chuva é imagem fortíssima pra todo mundo, claro. O hexagrama número nove do I Ching associa a chuva que cai com o repouso que chega, a conclusão bem-sucedida de uma situação de tensão, alcançada através da ação penetrante do vento, que significa o aperfeiçoamento. Mas às vezes o significado é o oposto, como no versículo bíblico que diz que quem semeia ventos colhe tempestades. Obviamente, identifico-me mais com a primeira interpretação.

Dizem que os esquimós possuem inúmeras palavras para descrever a neve. Que temos nós para chuva? Chuva, chuvisco, chuvisqueiro, borrasca, toró, tempestade, garoa, aguaceiro, dilúvio. Não são muitas não. No fim das contas, temos que usar mesmo é um adjetivo: chuva fina, chuva mansa, chuva fria, chuva boa, chovendo canivetes e por aí vai... Pois então, a minha favorita é a pesada de verão, forte, que molha tudo, cria rios e lagos e pára completamente deixando um cheiro de terra ou asfalto molhado no ar e uma brisa suave, fresca e bem agradável que diz que agora está tudo bem, tudo dando certo.

Minha mãe passou seu último verão no hospital, um calor dos diabos, primeiro só com ventilador, depois com o ar-condicionado. Depois de ficar a tarde inteira com ela, voltava pra casa preocupada em regar o jardim, pois ela ficaria chateada se eu deixasse a grama morrer. Na tarde em que ela se foi, choveu muito, muito mesmo! A árvore perto da janela do seu quarto partiu-se em duas: uma parte ficou em pé, a outra caiu no chão. Disse pra Fernanda, minha irmã, que essa imagem num texto literário seria considerada um clichê, banal, mas foi exatamente assim que aconteceu. Ela partiu em grande estilo! E num dia de chuva torrencial, do jeito que eu gosto, pra me dizer que não me preocupasse, que tudo ficaria bem.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

2008 é o ano

De acordo com os budistas, a felicidade é o fruto da ausência do desejo. Se assim for, 2008 é o ano em que vou ser feliz. Apesar dos muitos planos e expectativas, não me lembro de me sentir tão indiferente quanto ao que há de ser. E já vou me desligar deste pensamento, pra não começar a desejá-lo também.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Natal

Fim de ano lá em casa era uma festa pra mim. Antes de mais nada, porque entrava em férias, podia acordar na hora que quisesse e passar o dia inteiro dentro de casa lendo, assistindo televisão, tocando piano ou escutando música. Mas não chegava a fazer nada disso. Não em dezembro. Isto porque, logo no início do mês, começávamos a preparar o Natal. Eu me dedicava a colocar nossas coisas em ordem, limpando e arrumando a bagunça do ano inteiro. Minha mãe tirava a decoração das caixas e ia espalhando pela casa. Depois me chamava pra ver. Eram anjos de cartolina, sininhos, guirlandas em papel vermelho brilhante feitas com pinha e bolas de Natal e outros tantos símbolos tradicionais. Ela adorava tudo isso.

Todos os dias tocava um disco de Natal. Sempre as mesmas músicas em versões as mais variadas possíveis. Piano, Big Bands, conjuntos musicais típicos da década de setenta, cantores solistas e coros. Ah, muitos coros! Minha mãe era apaixonada pelo coro. Todos os anos eu ouvia a mesma história dos concertos de Natal do coro da Igreja Metodista de Lins, onde minha mãe cantava contralto e atuava como organista. Sobre como as becas foram costuradas seguindo o modelo de beca de uma escola do Rio de Janeiro. Como um radialista muito conhecido se encantou com o coro quando se apresentaram pela primeira vez no auditório da Rádio. Como a regente, dona Déa Affini, havia melhorado o desempenho dos cantores e transformado o concerto num evento para toda a cidade. E como.... e por aí vai! Eu ficava ouvindo e imaginando a delícia que devia ser participar de algo assim!

Então chegava a vez da árvore. Quando éramos bem crianças, ela reservava um enfeite para cada um de nós pendurar. Mais tarde, assumi essa função, pois só eu continuava entusiasmada com a tarefa. Lá pelos meados do mês vinha a clássica pergunta: Flávia, você não vai montar a árvore de Natal? Lá ia eu colocar um disco como trilha sonora e passar a tarde me esforçando pra deixar bonita a velha árvore desmilingüida, comprada no meu primeiro aniversário.

Nos últimos anos, já em Porto Alegre, o interesse dela começara a diminuir. Mantinha o ritual todo como uma tradição, mas não parecia tão alegre como antes. Mesmo assim, a clássica pergunta se repetia infalivelmente, agora com um acréscimo: Flávia, quando é que vocês vão começar a ensaiar as músicas de Natal?, referindo-se ao meu coro.

No próximo dia 17 completam-se dois anos da sua morte. Passei a maior parte desse tempo meio anestesiada, como se ela estivesse apenas visitando minha avó em São Paulo e estivesse pra voltar a qualquer momento. Em 2006, as festas de fim de ano foram obscurecidas pelas idas e vindas da CTI onde meu pai ficou internado por quatro meses. Mas neste último Natal, a ausência dela foi enorme. Não decorei a casa, não montei a árvore, não ouvi nem cantei as canções de Natal que tanto gosto. Não tive vontade. Não veio sequer uma nostalgia da infância. Penso que foi por ser realmente a primeira vez que celebramos esta festa sem ela. Que nos próximos anos voltarei a sentir a mesma alegria de antigamente. Assim espero. Graças a tudo isso, o Natal sempre teve um grande significado pra mim. Não gostaria de perdê-lo.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Ano Novo

Então 2008 chegou. Dizer que o ano passado trouxe muitas mudanças não chega a ser significativo. Pelo que me lembro, posso dizer o mesmo de quase todos os anos passados, ainda que as mudanças não tenham sido externas, aparentes, contabilizáveis. Mas o somatório destas mudanças me levaram para tão longe de onde eu comecei nesta vida que já não me recordo de quando foi que dei o primeiro passo. Não falo de mudanças compulsórias, da passagem de infância para adolescência ou idade adulta (e paramos por aí...), mas das mudanças que procuro fazer conscientemente na minha trajetória interna, na minha maneira de ver a vida.

Porque desde sempre me senti como essa nota desafinada num acorde, eu sempre tentando afiná-la e o acorde sempre modulando. Quando chegava, já não era mais ali que devia estar, não era mais aquilo que devia fazer e, pior, todos já tinham ido embora... Psicologia, astrologia, meditação, auto-análise e até terapia, tudo pra me achar e achar meu canto neste mundo, e o mundo girando depressa demais. Celebrei meus quarenta com um currículo de vinte. Tá certo, vinte bem ampliados, alongados no tempo, mas ainda sim, com a perspectiva dos vinte.

Ou não. Ainda quero as mesmas coisas que queria, ainda não conquistei nem metade delas! E ainda me acontecem as mesmas situações, os mesmos nós, as mesmas dificuldades. Mas algo mudou por dentro. Parece que estou mais leve. Aos vinte anos, eu tinha toda minha vida pela frente e me desesperava como se ela fosse acabar no dia seguinte. Agora que os prazos começam a se fechar, minha sensação é a de ter a vida inteira pela frente. Celebrei meus quarenta com a certeza de que começara finalmente a rejuvenescer.

Será que todos que chegam aos quarenta se sentem assim? Ou será que esta sensação é fruto de todo meu esforço em afinar minha nota? Se for, então posso dizer que construí algo, realizei alguma coisa, ainda que invisível aos olhos das pessoas, mas extremamente sólido e importante para mim. Existe uma historinha zen onde o Mestre pergunta ao discípulo quem ele é, rejeitando todas as respostas recebidas - nome, profissão, filiação, nacionalidade e outros tantos meios que usamos para nos identificar - pois nenhuma delas definia a totalidade do que realmente somos. Então qualificar realização pessoal por rótulos que o mundo nos cobra também é um modo de limitar nossa totalidade. Se cada um de nós tem uma trajetória pessoal e intransferível então não há nenhum modelo de existência.

Quando eu era pequena, não conseguia visualizar meu próprio rosto na minha imaginação. Sério, isto começou a me incomodar, pois via todo mundo em meus pensamentos, mas não conseguia colocar a mim mesma dentro do quadro. Eu era sempre a câmera. Lembro-me da primeira vez que consegui me enxergar: foi numa tarde de julho de 1985, numa aula de biologia do professor Miltinho, lá no Unificado da Alberto Bins, duas semanas antes do vestibular da PUC. Fiquei tão surpresa que não prestei mais atenção na aula. De lá pra cá, os flashes foram aumentando e hoje consigo me ver claramente em meus pensamentos.

Minhas considerações sobre este fato são variadas. Acho que reflete o auto-conhecimento que conquistei. Também tem sido mais fácil me afastar dos meus problemas e enxergá-los como se fossem de outra pessoa. Mas o melhor mesmo é que, já que na minha cabeça posso participar do meu filme como atriz principal, ultimamente venho escrevendo os roteiros que mais me agradam e espero que ao menos alguns deles estejam dentro do orçamento que Deus reservou pra mim.