Então eu resolvi fazer este (excelente) curso de História da Arte. Já na faculdade queria muito me matricular nesta disciplina, que era eletiva para a Música, mas nunca sobrava vaga. Quando recebi a divulgação destes cursos achei que seria uma boa oportunidade e me inscrevi para os dois módulos oferecidos: da Renascença ao Iluminismo e arte do Século XX a partir da década de 50.
Como sou completamente leiga no assunto, procuro absorver a maior quantidade possível de informações, mas não me preocupo muito em desenvolvê-las, porque a idéia é esta mesmo: reter o que chamar minha atenção. E o que me chamou a atenção nesta semana foram as telas do pintor Barnett Newmann (1905-1970), que se insere no grupo de artistas que optou por trabalhar com "campos de cor". Suas telas, todas datadas a partir de 1948 se não me engano, são campos de cor cortados por uma faixa, geralmente vertical (mas havia também algumas horizontais) que ele mesmo chamou de "zip", ou faixas de luz. Algumas apresentam uma só tonalidade interceptada pela faixa; outras compõem-se de faixas em tons mais escuros ou claros, criando barras verticais.
As primeiras telas não chegaram a me impressionar, mas a seqüência incessante deste mesmo tema começou a me dar uma certa angústia. Aquelas faixas começaram a se parecer com grades e a sensação de "aprisionamento" destas cores passou a me incomodar. De repente, surgiram umas telas onde a tinta "vazava" pra fora dos limites do campo de cor, como uma se fosse um acabamento malfeito, mas isto era interessante - e logo percebi que não era a única a pensar assim, pois as manchinhas de tinta suscitaram comentários do grupo ("Na faculdade não nos deixavam fazer isso", "Ah, mas é o que mais gosto"). Bem, no meu entender, depois de todo aquele rigor geométrico, a manchinha provocava um certo alívio, um sinal de que o aprisionamento não era completo afinal, uma promessa incipiente de liberdade.
E aí é que surge o paradoxo. Pois, segundo a professora, essa opção foi feita justamente pela liberdade que trazia ao artista - liberdade de não ter que pintar uma tela figurativa! Sim, visto por esse ponto de vista, eu compreendo. Toda tela figurativa já está praticamente definida pelo artista (se ele pinta um vaso de flores, nós veremos muito provavelmente um vaso de flores), enquanto que uma tela cheia de cor é um campo livre onde pode nascer toda e qualquer imagem. O grito de liberdade de não precisar fazer esta escolha! Já o pintor que estudamos na semana anterior, Frank Stella, também havia feito uma opção semelhante, porém Stella trabalha com listras em forma de "V", dando origem a imagens quase caleidoscópicas em algumas obras. Apesar de também conter geometria em seus padrões, eles parecem surgir com mais leveza do que as barras de Newmann.
Deixo claro aqui que não se trata de um julgamento de valor e sim de impressões pessoais. Este tipo de pintura não me atrai muito, talvez até pela minha falta de conhecimento mais elaborado sobre ela. Mas havia beleza. Gostei particularmente da seqüência de telas chamadas de "18 Cantos", onde as faixas estavam esmaecidas, pareciam-se mais com reflexos de luz e menos com grades e várias ainda com manchas escuras pintadas sobre elas, como as manchas de uma borracha suja no papel (de novo, talvez a sensação de afrouxamento do rigor geométrico seja o motivo da minha preferência).
De qualquer modo, esta foi minha impressão. Outra pessoa fará uma leitura completamente diferente e é por isso mesmo que se faz arte, creio eu. E digo mais, esta é minha impressão hoje, sei lá eu de amanhã! Recordo-me da primeira vez que ouvi o "Lux Aeterna", de Györgi Ligeti. Esse "Requiem" contemporâneo escrito para 16 vozes em micropolifonia causou-me falta de ar e angústia extrema na primeira audição, numa aula de História da Música, e só não saí correndo e gritando pela óbvia repercussão que este ato teria! Bem, quase quinze anos depois, o Januibe encasquetou que o Musica Reservata tinha de cantar o Lux. Não achei ruim não, até fiquei curiosa pra saber se teria a mesma reação. Pois não foi incrível? Naquela audição, percebi apenas uma "cor sonora", uma vibração perpétua que ora privilegiava sons mais agudos, ora sons mais graves. Mas, como cantora, pude verificar o movimento interno incessante feito de cânones diatônicos que vão se sobrepondo, com determinadas notas sendo "passadas" de uma voz para outra numa teia sonora vibrante. Mais ainda, naqueles dias em que ensaiávamos o Lux, eu estava vivendo momentos cotidianos de angústia e solidão contínuas, seis meses após a morte de minha mãe. No entanto, os ensaios daquela peça me deixavam serena, passaram a ser ilhas de paz no meio da tristeza.
Bem, está aí um exemplo de como a mesma obra pode nos impactar diversamente, dependendo do momento de vida em que nos encontramos, mas também do grau de intimidade que temos com ela. Nada é definitivo, afinal de contas, nem mesmo nossas impressões sobre arte. Por isso ela não cessa de preencher nossos vazios (ou de esvaziar nosso transbordamento!). É a necessidade da arte, mais um motivo!
segunda-feira, 31 de março de 2008
Impressões sobre Newmann e Ligeti
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