sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Memórias

Final de tarde a passarada canta na praça da caixa d'água, em frente ao portão de entrada do meu colégio, lá em Araçatuba. O barulho que os pardais fazem chega a parecer um campo de batalha. Essa foi uma das imagens que gravei na memória antes de me mudar pra Porto Alegre. Durante um ano inteiro, já sabendo que não voltaria pra lá tão cedo e que, certamente, não voltaria a morar lá, andei por todos os meus lugares preferidos, e os nem tão preferidos, e dizia pro meu cérebro: memoriza isto. Isto era um cheiro, uma imagem, um som, uma cor, uma sensação térmica, um lugar. Incrível como funcionou, pois muitos daqueles momentos ficaram mesmo registrados.

Mas é lógico que as memórias em geral não são gravadas intencionalmente. Uns anos atrás comprei o CD com os sucessos do Raul Seixas e quando ouvi Gita tive um acesso de angústia, um quase sufocamento, acompanhado de uma saudade de algo que não sabia explicar. E a imagem veio logo em seguida. Nossa casa ficava num terreno com desnível. Havia uma escada de uns dez degraus da cozinha até o quintal. Eu costumava me deitar no largo corrimão de tijolos e ficar um tempão olhando pras nuvens. No quartinho dos fundos, era comum a empregada estar passando roupa com um radinho de pilha ligado em alguma AM. E Raul Seixas tocava adoidado naqueles anos setenta em que eu era criança. Eu nunca mais tinha escutado esta música, então quando ouvi o CD foi quase um choque!

Gosto tanto de guardar esses momentos em que nada estava acontecendo de específico. Nenhum fato extraordinário, nenhuma ação ou encontro especial (OK, estes também estão na memória, é claro). São manhãs iluminadas por um sol gelado descendo do ônibus aqui em Porto Alegre, ou aquelas tardes refrescadas do após chuva que já mencionei. Um início de noite com ar morno, sentada na cadeira de balanço lendo um livro, um dia calorento andando pelo centro ou um dia frio de rachar os lábios caminhando de volta da escola. Mas todos esses registros ficaram guardados porque na hora eu parei de pensar no que estava fazendo pra prestar atenção no agora!

Como é que diz a canção do John Lennon? A vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outras coisas? Acho que era algo assim. Bem, depois que comecei a meditar, passei a tentar viver mais conscientemente neste espaço mental onde não estamos preocupados com nada, esperando por nada, ansiando por nada. E fazendo o que estivermos fazendo com a mente fixa no presente. Para acabar com a impressão de que minha vida nada mais era do que um eterno esperar por algo, sem sequer saber se esse algo chegaria. Como com os personagens de "Esperando Godot", a peça de Beckett cuja leitura me causou uma terrível aflição!

Pois então, foram vários anos de tentativa, nem sempre bem-sucedida, mas tem valido a pena. Já consigo desacelerar certos momentos, alongá-los no tempo. É reconfortante pensar que isto já acontecia também espontaneamente, pois acabam sendo essas as horas mais expressivas da nossa existência, como no terceiro ato de "Nossa Cidade", quando Emily escolhe um dia "pouco importante" para ser revisitado e se emociona por não ter prestado atenção a ele quando estava viva, citando mais uma peça teatral. São os momentos em que a vida acontece!...

Estamos no dia 17 de janeiro, mas a desaceleração das atividades faz parecer que já se foi uma eternidade desde a entrada do ano, por um lado. Por outro, não vejo o tempo passar, tamanha é minha concentração no instante que estou vivendo. Bom assim. Não anseio pelo que espero e o que espero chega mais rápido.

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